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Certas palavras não podem ser ditas em qualquer lugar e hora qualquer. Estritamente reservadas para companheiros de confiança, devem ser sacralmente pronunciadas em tom muito especial lá onde a polícia dos adultos não adivinha nem alcança. Entretanto são palavras simples: definem partes do corpo, movimentos, atos do viver que só os grandes se permitem e a nós é defendido por sentença dos séculos. E tudo é proibido. Então, falamos. Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 24 de março de 2008

A música parou.

- Vamos embora, a festa acabou - Adriano segura o irmão pelo braço.

- Espera, deixa eu terminar esse copo.

Com um suspiro fundo, Adriano deixa o corpo cair na cadeira, enquanto André beberica com esforço sua bebida.

As luzes se acendem e pela primeira vez na noite, Adriano consegue ver as pessoas. "Interessante".

- Me diz uma coisa, André. Com qual dessas aí você estava enrabichado?

André derruba o copo e começa a rir. Joga o corpo para trás e olha em volta, com o dedo apontado, procurando.

- Aquela... não. Opa, aquela, não tambem....

- Me diz como ela é. Chamava Diana, é?

André atira-se de bruços na mesa, rindo até engasgar. Aos poucos, levanta a cabeça e, com a mão cambaleante, aponta para a porta.

- Tá vendo aquele cara ali, de terno branco? É o Diogo, com quem eu dividi o apê por dois anos. Pois então... Pois então, é ele a "Diana" que eu te falei...

André derruba novamente a cabeça na mesa e recomeça a rir. Adriano levanta-se, pega a paletó pendurado na cadeira, olha para o irmão e junta-se à multidão que deixa o salão, sem olhar para trás.
Dez anos atrás. Festa de formatura do André. Centenas de pessoas embriagadas, cantando de mãos dadas uma música brega de uma banda que acabou porque o vocalista morreu.

- Cara, que bom que você veio. Eu ia ser o único aqui sem família - as palavras se enrolam na boca de André, a essa altura despenteado, com a camisa aberta e o suor escorrendo pela testa.

Cinco horas antes. André passa insistentemente o pente pelos cabelos melados de gel. Puxa a cabeça para trás, olha de um lado, olha do outro. Recomeça a pentear.

- Isso já está ótimo. Vamos logo ou vamos chegar atrasados.

Adriano sentado no sofá, observa seu irmão mais novo. "Meu irmão certinho". Formando em Direito. Terno novo, apartamento bacana. "E eu..."

- É, já está bom mesmo.

Silêncio no carro. O rádio começa a tocar uma música antiga. Adriano automaticamente se lembra das festas do bairro, do cheiro da noite. Mistura de perfumes baratos e das flores dos jardins.

Mais sete anos atrás. Meninos levam um refrigerante. Meninas levam um prato de salgados. Discos de vinil, luzes apagadas e música lenta.

- Você ia ficar muito chateado se encontrasse a Débora lá?

"Tinha que perguntar. É uma besta mesmo".

- André, olha aqui, hoje é a sua formatura...
- Tá, eu sei. Esquece, nem sei porque eu perguntei. Foi a música. Eu lembrei, só isso.
- Mas então você mandou um convite pra ela. Mandou?
- ....
- Responde, droga.
- Mandei sim. O que é que tem? É minha amiga!

Adriano encosta o carro. Acende um cigarro e desliga o rádio.

- Eu vou falar, mas sei que não adianta. Você tem que parar com isso, André.
- Não precisa falar, já parei. Mandei o convite por educação, só. Ela nem iria mesmo.

Adriano dá uma tragada, funda, e solta a fumaça devagar, observando os desenhos que se formam. Dá a partida no carro e engrena a primeira marcha. Com o cigarro entre os dentes, conclui a primeira conversa da noite.

- Se tiver vergonha na cara, não aparece mesmo.
"R$ 2. Não, R$ 2,40. Pra um salgado deve dar".

Guarda as moedas novamente no bolso da calça e dirige-se a um boteco. "Mais um lugarzinho sujo". Salgado, R$ 1,50.

- Me vê uma coxinha.

Enquanto come, Adriano repara que o balconista é parecido com André. "Aquela besta".
"Lugarzinho feio".

Saindo da escada rolante, Adriano vê pela primeira vez em horas o céu da cidade. Chuva. Frio.
Bate as mãos no bolso do casaco para conferir se está tudo certo e fica tranqüilo.

"Se eu conseguir pelo menos R$ 500, pego o primeiro ônibus pra fora daqui".

As pessoas vão e vem, com seus casacos e bolsas. O chão está molhado e cheio de papéis. "Melhor".

Mulheres puxando crianças pelas mãos, homens de terno. Ainda não. Meia hora depois, um homem de barba e chapéu surge da escada rolante. Fica parado, olhando para os lados. "É esse".

Adriano começa a andar, apressado, e esbarra no outro homem. Murmura uma desculpa e segue em frente, mas de repente se volta e apanha algo do chão.

- Senhor, acho que deixou cair isto - e estende o par de alianças pregado a um quadrado sujo de papel grosso.

- Não, não deixei cair nada - balbucia o homem.

- Não são suas? Puxa, mas de quem...

Adriano olha em volta, procurando alguém que não existe.

- Acho que não vamos encontrar o dono. Olha só, que azar, alguém perder um par de alianças bem aqui. Devíamos entregar para alguém... Mas esses funcionários não têm cara boa, duvido que procurem o dono.

Olha para o homem, fazendo-se de desconfiado.

- Já que nós achamos, poderíamos vender e repartir o dinheiro.

Olha em volta de novo.

- Pena que aqui não tem nenhuma loja de jóias, senão poderíamos vender já. Mas eu conheço um lugar lá no centro que.... ah, que pena, hoje não posso ir até lá. Mas se você me der a metade do valor, eu deixo você levar e...

- Rapaz, está pensando que eu sou idiota? Suma daqui, ou eu chamo a polícia - o homem já está com um celular nas mãos.

Adriano sai, na chuva. "Está ficando difícil".