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Certas palavras não podem ser ditas em qualquer lugar e hora qualquer. Estritamente reservadas para companheiros de confiança, devem ser sacralmente pronunciadas em tom muito especial lá onde a polícia dos adultos não adivinha nem alcança. Entretanto são palavras simples: definem partes do corpo, movimentos, atos do viver que só os grandes se permitem e a nós é defendido por sentença dos séculos. E tudo é proibido. Então, falamos. Carlos Drummond de Andrade

domingo, 20 de janeiro de 2008

No ano seguinte, ele não voltou. Ela esperou toda arrumada, de vestido novo, porque o velho não cabia mais. Mas ele não apareceu.
- Talvez esteja doente - disse Miguel.
- Você sabe que ele não adoece nunca.
Miguel chegou bem pertinho dela e sussurrou, num calafrio:
- Talvez ele não exista, Wendy.
Nessa hora, Wendy só não chorou porque Miguel já estava chorando.
Mas na primavera seguinte, na hora da limpeza geral, Peter voltou. E o mais esquisito é que nunca reparou que tinha pulado um ano.
Essa foi a última vez que a menina Wendy o viu. Durante mais algum tempo, por amor a ele, ela fez o possível para não crescer. E sentiu que estava sendo infiel quando ganhou um prêmio de conhecimentos gerais na escola. Mas os anos se passaram sem trazer de volta o menino distraído. E quando os dois tornaram a se encontrar, Wendy já estava casada e Peter para ela não era mais do que uma poeirinha na caixa em que ela tinha guardado os brinquedos. O caso é que ela tinha crescido. Você não precisa ficar com pena. Ela era do tipo que gosta de crescer. No fim das contas, por espontânea vontade, acabou até crescendo um dia mais depressa do que as outras meninas.
A essa altura, todos os meninos já estavam crescidos e encaminhados. Por isso, nem vale muito a pena falar mais neles. Todo dia, você pode ver os Gêmeos e Bicudo e Cabelinho a caminho do escritório, cada um carregando sua pastinha e seu guarda-chuva. Miguel é maquinista de trem. Deleve casou com uma dama da nobreza, e ganhou um título. E aquele juiz ali, de peruca branca na cabeça, saindo por aquele portão de ferro, você está vendo? Era o Piuí... O sujeito barbudo que não sabe nenhuma história para contar para os filhos já foi o João.
Wendy se casou de branco com uma faixa cor-de-rosa. É estranho pensar que Peter não apareceu de repente voando na igreja e não pousou na frente de todo mundo para impedir o casamento.
Os anos se passaram e Wendy teve uma filha. E isto não devia ser escrito com tinta comum, mas com ouro líquido.
Ela se chamava Jane e tinha um olhar perguntadeiro de quem está sempre curiosa, como se desde o momento em que chegou nesta terra estivesse querendo fazer uma porção de perguntas. E assim que ela teve idade de, afinal, poder perguntar, a maioria das coisas que queria saber era sobre Peter Pan. Adorava ouvir histórias de Peter Pan, e Wendy contou a ela tudo o que conseguia lembrar, naquele mesmo quarto de crianças onde tinha aprendido a voar e de onde tinha fugido com ele. Agora era o quarto de Jane, porque o pai dela tinha comprado a casa bem baratinho do pai de Wendy, que não queria mais saber de escadas. A senhora Darling a essa altura já estava morta e esquecida.
Só havia duas camas no quarto agora, a de Jane e a da babá. Não havia mais casinha de cachorro, porque Naná também já tinha morrido. De velhice. E no fim da vida deu muito trabalho, sempre convencida de que ninguém mais, a não ser ela, era capaz de cuidar das crianças direito.
Uma noite por semana, era a folga da babá. Nesse dia, quem punha Jane para dormir era Wendy. Era a horas das histórias. Jane tinha inventado uma brincadeira de levantar as cobertas por cima da cabeça da mãe e da dela, fazendo uma espécie de tenda. Na escuridão em que ficavam, ela falava baixinho:
- O que é que a gente está vendo agora?
- Eu acho que hoje não estou vendo nada - diz Wendy, com a sensação de que Naná não ia gostar de que continuassem conversando.
- Está vendo, sim - teima Jane - Está vendo o tempo em que você era criança.
- Isso foi há muito tempo, meu amor... - disse Wendy. - Meu Deus, como o tempo voa...
- E o tempo voa do mesmo jeito que você voava quando era criança? - pergunta a menina esperta.
- Do jeito que eu voava? Sabe de uma coisa, Jane? Às vezes eu fico achando que eu nunca voei mesmo, de verdade...
- Voou, sim.
- Os velhos tempos em que eu podia voar...
- E por que é que você não pode mais, mãe?
- Porque eu cresci, minha querida. Quando as pessoas crescem, se esquecem.
- Por que é que elas esquecem?
- Porque não são mais alegres e inocentes e de coração leve. Só os alegres, inocentes e de coração leve é que conseguem voar.
- O que é isso de alegres, inocentes e de coração leve? Eu também queria ser alegre, inocente e de coração leve.
Ou então, pode ser que Wendy admita que está vendo alguma coisa. Diz:
- Eu tenho certeza de que é este quarto.
- Eu tenho certeza de que é - diz Jane. - Continue.
E aí elas embarcam na grande aventura da noite em que Peter entrou voando, para procurar a sombra dele.
- O bobinho... - diz Wendy. - Tentou colar a sombra com sabão e, quando não conseguiu, começou a chorar, e me acordou e eu costurei para ele.
- Você pulou uma porção de pedaços - interrompe Jane, que já sabe a história melhor que a mãe. - E quando você viu ele sentado no chão chorando, o que foi que você disse?
- Eu me sentei na cama e disse assim: "Menino, por que é que você está chorando?".
- Isso, foi assim mesmo! - diz Jane, respirando fundo.
- E depois ele levou nós todos, voando, com ele, para a Terra do Nunca, para junto das fadas e dos piratas e dos índios e da Lagoa das Sereias e da casa debaixo da terra e da cabaninha.
- Isso mesmo. E de que foi que você gostou mais?
- Acho que foi da casa debaixo da terra.
- Eu também. E qual foi a última coisa que Peter te disse?
- A última coisa que ele disse foi: "Fique sempre me esperando e uma noite você vai ouvir meu cocoricó...".
- Isso!
- Mas que pena! Ele se esqueceu de mim completamente...
Wendy disse isso com um sorriso. Tinha crescido a esse ponto.
- E como era esse cocoricó dele? - perguntou Jane uma noite.
- Assim... - disse Wendy, tentando imitar.
- Não. Não era. - disse Jane, séria. - Era assim.
E fez muito melhor do que a mãe.
Wendy ficou um pouco surpresa.
- Minha filha, como é que você pode saber?
- Eu sempre ouço quando estou dormindo.
- Ah, sim, muitas meninas ouvem quando estão dormindo. Eu sou a única que ouvi acordada.
- Sorte sua. - disse Jane.
E então, uma noite, veio a tragédia.
Era primavera, a história daquela noite já estava contada e acabada, e Jane estava dormindo em sua caminha. Wendy estava sentada no chão, bem perto da lareira, para poder enxergar umas meias que estava cerzindo, porque não havia outra luz no quarto. Enquanto cerzia, ouviu um cocoricó. Então a janela se abriu com uma brisa, como antigamente, e Peter pousou no chão.
Estava exatamente como sempre. Wendy logo reparou que ele ainda tinha todos os dentinhos de leite.
Ele era um menino e ela tinha crescido. Encolheu-se junto da lareira, sem ousar se mexer, desamparada e culpada, uma mulher crescida.
- Oi, Wendy! - exclamou ele, sem notar nenhuma diferença, porque estava pensando só em si mesmo, e na escrutidão do quarto o vestido branco podia ser a camisola em que ele a tinha visto pela última vez.
- Oi, Peter! - respondeu ela meio baixo, se apertando para ficar o menor possível. Algo dentro dela chorava e pedia: "Mulher, mulher, me solte!".
- Ei, cade João? - perguntou ele, de repente, dando falta da terceira cama.
- João não está aqui agora. - disse ela, engolindo em seco.
- E Miguel? Está dormindo? - perguntou Peter, dando uma olhada distraída em direção a Jane.
- Está. - respondeu ela, e sentiu que estava sendo desleal com Jane e também com Peter.
Antes que fosse julgada por isso, tratou de acrescentar rapidamente.
- Esse aí não é o Miguel.
Peter olhou:
- Oba! É novo?
- É.
- Menino ou menina?
- Menina.
Na certa ele ia entender agora. Mas nada disso. Ela perguntou, com a voz falhando:
- Peter, você está achando que eu vou sair voando com você?
- Claro, foi para isso que eu vim. Ou você esqueceu que está na hora da nossa faxina de primavera? - o tom de voz dele era meio sério.
Ela sabia que não adiantava dizer que ele tinha deixado passarem muitas faxinas de primavera... Respondeu em tom de quem pede desculpas:
- Não posso. Esqueci como é que se voa.
- Num instante eu te ensino outra vez.
- Ai, Peter, não desperdice a poeira das fadas comigo...
Ficou em pé. E então, finalmente, deu um medo nele, que perguntou assustado:
- Que foi que aconteceu?
- Vou acender a luz e você mesmo vai poder ver.
Ao que eu saiba, foi a única vez na vida dele - ou quase a única - que Peter teve medo. E gritou:
- Não! Não acenda!
Ela deixou que seus dedos brincassem pelo meio dos cabelos do menino trágico. Não era mais uma menininha de coração partido por causa dele. Era uma adulta, sorrido de tudo. Mas eram sorrisos molhados.
Depois, acendeu a luz e Peter viu. Deu um grito de dor. E quando aquela criatura alta e bonita se aproximou para pegá-lo no colo, ele recuou abruptamente.
- Que foi que aconteceu? - perguntou de novo.
Ela teve que contar.
- Fiquei mais velha, Peter. Já passei muito dos vinte. E cresci há muito tempo.
- Mas você prometeu não crescer.
- Não dava para evitar. E me casei, Peter.
- Não! Não casou...
- Casei, sim. E a menininha que está na cama é minha filha.
- Não é, não.
Mas achou que era. E deu um passo em direção à criança adormecida, com a adaga levantada. É claro que não deu golpe nenhum. Em vez disso, sentou-se no chão e soluçou. Wendy não sabia o que fazer para consolá-lo, embora antigamente pudesse fazer isso com tanta facilidade. Mas agora ela era apenas uma mulher e saiu do quarto correndo, para tentar pensar.
Peter continuou a chorar. Daí a pouco seus soluços acordaram Jane. A menina se sentou na cama, e logo ficou interessada.
- Menino - perguntou -, por que é que você está chorando?
Peter se levantou e fez uma curvatura, saudando-a, e ela o cumprimentou da cama.
- Olá. - disse ele.
- Olá. - disse ela.
- Meu nome é Peter Pan.
- Eu sei.
- Eu vim buscar sua mãe, para ela ir comigo para a Terra do Nunca.
- Eu sei. - disse ela. - E já estava te esperando.
Quando Wendy voltou, insegura, encontrou Peter sentado no pé da cama, dando um cocoricó glorioso, enquanto Jane, de camisola, dava voltas voando pelo quarto, em êxtase.
- Ele precisa tanto de uma mãe... - explicou Jane.
- Eu sei. - admitiu Wendy, numa mistura de tristeza e saudade. - Ninguém sabe disso melhor do que eu.
- Tchau... - disse Peter para Wendy, levantando vôo em companhia de Jane, perfeitamente à vontade. Para ela, já era a maneira mais fácil de ir de um lado para outro.
Wendy correu para a janela.
- Não! Não! - gritou.
- É só agora na primavera, mamãe, para dar uma limpeza geral. - explicou ela. - Ele quer que eu sempre vá ajudar na faxina da primavera.
- Eu queria tanto ir com vocês... - suspirou Wendy.
- Mas você não pode mais voar, não está vendo? - disse Jane.
É claro que, no fim, Wendy deixou os dois irem. A última vez que olhamos para ela vemos que está junto da janela, vendo os dois indo cada vez mais longe no ceú, até ficarem pequenininhos, do tamanho das estrelas.

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