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Certas palavras não podem ser ditas em qualquer lugar e hora qualquer. Estritamente reservadas para companheiros de confiança, devem ser sacralmente pronunciadas em tom muito especial lá onde a polícia dos adultos não adivinha nem alcança. Entretanto são palavras simples: definem partes do corpo, movimentos, atos do viver que só os grandes se permitem e a nós é defendido por sentença dos séculos. E tudo é proibido. Então, falamos. Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 24 de março de 2008

Dez anos atrás. Festa de formatura do André. Centenas de pessoas embriagadas, cantando de mãos dadas uma música brega de uma banda que acabou porque o vocalista morreu.

- Cara, que bom que você veio. Eu ia ser o único aqui sem família - as palavras se enrolam na boca de André, a essa altura despenteado, com a camisa aberta e o suor escorrendo pela testa.

Cinco horas antes. André passa insistentemente o pente pelos cabelos melados de gel. Puxa a cabeça para trás, olha de um lado, olha do outro. Recomeça a pentear.

- Isso já está ótimo. Vamos logo ou vamos chegar atrasados.

Adriano sentado no sofá, observa seu irmão mais novo. "Meu irmão certinho". Formando em Direito. Terno novo, apartamento bacana. "E eu..."

- É, já está bom mesmo.

Silêncio no carro. O rádio começa a tocar uma música antiga. Adriano automaticamente se lembra das festas do bairro, do cheiro da noite. Mistura de perfumes baratos e das flores dos jardins.

Mais sete anos atrás. Meninos levam um refrigerante. Meninas levam um prato de salgados. Discos de vinil, luzes apagadas e música lenta.

- Você ia ficar muito chateado se encontrasse a Débora lá?

"Tinha que perguntar. É uma besta mesmo".

- André, olha aqui, hoje é a sua formatura...
- Tá, eu sei. Esquece, nem sei porque eu perguntei. Foi a música. Eu lembrei, só isso.
- Mas então você mandou um convite pra ela. Mandou?
- ....
- Responde, droga.
- Mandei sim. O que é que tem? É minha amiga!

Adriano encosta o carro. Acende um cigarro e desliga o rádio.

- Eu vou falar, mas sei que não adianta. Você tem que parar com isso, André.
- Não precisa falar, já parei. Mandei o convite por educação, só. Ela nem iria mesmo.

Adriano dá uma tragada, funda, e solta a fumaça devagar, observando os desenhos que se formam. Dá a partida no carro e engrena a primeira marcha. Com o cigarro entre os dentes, conclui a primeira conversa da noite.

- Se tiver vergonha na cara, não aparece mesmo.

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